"Um sistema fiscal mais justo pode reduzir as desigualdades." Entrevista com Dão Real Pereira dos Santos

Quando se fala em sistema fiscal, temos que pensar em tributos e em gasto público. O sistema fiscal é aquilo que define a forma como o Estado se financia e a forma como aplica os recursos. Para o nosso entrevistado, Dão Real Pereira dos Santos, auditor fiscal da Receita Federal em Porto Alegre, RS, “o sistema fiscal é como se fosse a espinha dorsal, que estrutura o Estado. Ele dá o modelo de como arrecadar impostos. E a maneira como são gastos estes recursos define qual o modelo de Estado se tem no dia a dia. Se for arrecadado mais de quem tem mais, e menos de quem tem menos, e se a​plicar mais recursos em quem tem menos, e menos em quem tem mais, se promove uma redução de desigualdades”.

  • Para que existe o sistema fiscal?

O sistema fiscal, com tributos e gastos públicos, implica a concepção de viver em sociedade. A noção de sociedade está relacionada com o bem público, ou seja, aquelas coisas que deveriam estar acessíveis a todos e pertencem a todos: saúde, educação, segurança, defesa civil, transporte etc. Isso pressupõe a construção de um Estado, alguém que administre a sociedade. Precisamos de uma organização coletiva quando existe um conjunto de bens que servem a todos. E este conjunto de bens são serviços públicos, instituições públicas e o patrimônio público. As coisas públicas são financiadas pelos tributos (impostos), mas são devolvidas à sociedade de forma ampla, universal e a todos, independentemente de as pessoas pagarem ou não os impostos.

  • De que forma o Estado devolve o que a sociedade pagou em impostos?

Se partirmos da lógica de que devemos receber do setor público proporcionalmente ao que se paga, vira preço. É como se fosse privado (recebe na proporção do que paga). A lógica dos tributos e do Estado é outra: um conjunto de bens que serve a todos e é financiado por todos, sem nenhuma relação de proporcionalidade. Isso nos leva a pensar num cenário extremo: todos os bens que existem são públicos, todos entregam para o governo e o governo administra a renda, devolvendo aquilo que cada cidadão precisa. De outro lado, outro extremo: uma carga tributária igual a zero, onde as pessoas não pagam impostos e todos os bens que existem são privados. E aí cada um vai ter acesso a estes bens na medida em que puder pagar por eles. Ou seja, o meio termo é que é o desejado, onde parte das coisas é adquirida individualmente, e parte é fornecida socialmente a todos.

  • Existe justiça na cobrança de tributos?

No mês de maio, no Brasil, acompanhamos um grande movimento chamado "Dia da Liberdade de Impostos". Essa campanha critica a carga tributária: diz que é muito alta. É dito que se paga muito, mas não em relação a quê. Quando se diz que a carga tributária é muito alta, diretamente está se dizendo: o Estado é muito grande. Mas se o Estado é muito grande, também não é dito onde se quer diminuí-lo. Então dizer simplesmente que a carga tributária é muito alta, normalmente, é um discurso vazio, porque analisa a carga tributária a partir de um número abstrato: quanto representa a carga tributária em relação ao PIB, comparando-a com outros países. A carga tributária do Brasil é de 36% do PIB, representa um terço de tudo o que se gera de renda no país. Se pensarmos na carga tributária em relação ao que se tem disponível, talvez a carga tributária seja justa. Temos uma rede pública de ensino que é deficitária, mas atende 88% das crianças ? ou seja, absorve quase a totalidade das crianças em idade escolar, sobrando somente 12% para a escola privada. Vamos pensar. Com 36% do PIB, aplicamos R$ 256,00 em cada criança ao mês na escola pública. E como se pode conseguir uma educação de melhor qualidade com R$ 256,00 por mês para cada criança, se sabemos que na escola privada, para garantir uma educação de melhor qualidade, se gasta mais de mil reais por criança ao mês? Se o imposto recolhido nos permite aplicar na educação de 88% das crianças e no Sistema Único de Saúde, que é o maior do mundo, e ainda construir toda a estrutura que há no Brasil com apenas cinco meses de trabalho, então talvez ele seja realmente justo, porque consegue um conjunto de bens públicos muito grande. Além disso, quando se fala que a tributação é injusta porque o retorno é baixo, normalmente se esconde grande parte dos retornos que são invisíveis do setor público, como a justiça, a proteção do direito de propriedade, entre outros.

  • Por que, então, se fala que a tributação é injusta?

A tributação é injusta, mas não porque ela é alta: é injusta porque é mal distribuída, porque tributa mais quem tem menos, e menos quem tem mais. Isso acontece porque o sistema tributário é um conjunto complexo de tributos, que tributa três bases: renda, patrimônio ou consumo. E o efeito da tributação se dá somente na renda disponível das pessoas. O tributo afeta a renda. Quando a carga tributária está mais voltada para o patrimônio e a renda, se atinge as pessoas que têm maior patrimônio e mais renda. E quando a carga tributária está mais voltada para o consumo, se atinge mais as pessoas que não conseguem poupar e transformar em patrimônio, e são obrigadas a consumir tudo o que ganham. A nossa carga tributária é mais de 50% sobre o consumo, então ela pesa muito. E isso é diferente nos países ricos, que têm uma carga tributária que pesa mais sobre a renda e o patrimônio, e pouco sobre o consumo.

  • E o gasto público consegue reduzir a desigualdade?

Sim, um pouco, principalmente pela Previdência, pelo Bolsa Família e pela saúde pública. Na educação, nem tanto, porque o investimento na educação superior é muito grande, se comparado ao investimento na educação básica. A educação básica diminui a desigualdade, é includente, enquanto a educação superior é seletiva. Se o sistema tributário afeta as rendas, promove o aumento da desigualdade. Os pobres ficam mais pobres, e os ricos ficam mais ricos, proporcionalmente às rendas de cada um. Nos países ricos, quem tem mais renda paga mais impostos. No Brasil é muito barato ter patrimônio e riqueza. Deveríamos ter uma tributação progressiva, onde há aumento das alíquotas na medida em que a renda vai aumentando.

  • Então seria importante implementar a tributação das grandes fortunas?

Sim, essas medidas melhorariam a qualidade do sistema tributário, fazendo com que ao longo do tempo passe a tributar mais as maiores rendas e os maiores patrimônios, e menos os que ganham menos, isentando aqueles que estão abaixo da capacidade contributiva. Reduzir a carga tributária sobre o consumo aumentaria o poder de compra dos mais pobres. Em contrapartida, é preciso transferir esta carga para o topo da pirâmide, cobrando das grandes fortunas e/ou do patrimônio acumulado. E isso seria justo, pois pegaria a parte residual do que as pessoas têm excedente e que não compromete sua condição de vida. Porém uma medida anterior seria mudar o Imposto de Renda, pois o atual não incide sobre as rendas do capital, mas sobre as rendas do trabalho. Ou seja, os salários que estão acima de um determinado patamar pagam imposto de renda sempre. Já a renda do capital (lucro, dividendo) é isenta. E são os mais ricos que vivem de renda de capital. Os mais pobres vivem de renda do trabalho.

  • Como a sonegação fiscal influencia esse cenário no Brasil?

Justiça fiscal é cobrar bem e gastar bem. Cobrar mais de quem tem mais, e menos de quem tem menos. Gastar bem é gastar mais com que tem menos, e menos com quem tem mais. Para ter um sistema justo, é preciso construir uma legislação tributária que respeite essa lógica. Se não existe uma máquina pública que consiga implementar um sistema justo de tributação, aí entra o problema da sonegação. Se não se consegue cobrar de quem tem mais, se agrava a injustiça. O problema da sonegação é a falta de estrutura eficiente de cobrança. Os mais ricos têm à disposição vários mecanismos que facilitam a sonegação. Quando a Receita Federal lança tributos não pagos, ela cobra os tributos e cobra multa. Nesses casos, o contribuinte tem duas ou três instâncias administrativas para recorrer. Hoje, só de dívidas tributárias sendo discutidas no Conselho de Contribuintes, há R$ 540 bilhões, sendo que 60% desse montante vêm das grandes empresas sonegadoras, com autuações acima de R$ 100 milhões. Se a metade fosse paga, dobraria num ano o investimento em saúde, educação e PAC. Isso é revelador. O nível de sonegação justamente das camadas menos tributadas é extremamente alto, e isto está devidamente identificado. Por ineficiência, há um grande complexo de privilégios aos sonegadores.

  • Como se resolve isso?

Isso se resolve com decisões políticas. É no Parlamento que se decide estas coisas. O sistema de representação política que se tem hoje representa muito mais o financiador das campanhas do que o eleitor. O financiador de campanha tem um peso muito grande, e 80% do dinheiro que financia as campanhas vêm dos grandes empresários, justamente os mesmos que escapam da tributação via sonegação de impostos. É todo um mecanismo armado para essa realidade que se tem hoje. E isso tem que mudar, mas passa pela necessidade de a sociedade se apropriar do tema, saber como é que funciona para mudar este sistema político e de representação.​

 

Educação e cidadania fiscal

A apropriação do assunto pela sociedade é imprescindível para que a sociedade perceba e compreenda a importância do sistema fiscal, e não simplesmente caia nos chavões comuns das campanhas contra o sistema tributário. Para isso, é preciso capacitar principalmente as lideranças dos movimentos sociais, para que discutam de forma qualificada a estrutura do sistema tributário e dos gastos públicos, para que consigam promover a mudança desse sistema. Não basta se resignar e pagar, mas sim fazer com que o sistema tributário seja mais justo.

Já existem vários trabalhos de educação fiscal sendo feitos dentro das escolas públicas, por exemplo. A partir daí as crianças vão percebendo que a escola pública onde elas estão estudando não é de graça: tem custo, o custo é alto, e elas também são donas daquele patrimônio. E daí elas começam a entender o funcionamento do Estado, da sociedade, a partir do entendimento do funcionamento da sua escola. A partir disso, a criança começa a se afastar do individualismo, tendência muito estimulada, e da concorrência, como se estivéssemos num campo de combate onde os melhores vão se promovendo e os demais vão sendo eliminados.

A educação fiscal, quando dirigida à escola, está muito vinculada à ideia de sociedade, ou seja, que as pessoas crescem realmente quando crescem juntas, com uma lógica de cooperação. É inconcebível a lógica da competição, principalmente em escola pública, onde o sentimento e a formação deveriam estar muito mais voltados para a realização do social e do coletivo. Quem faz trabalhos de educação fiscal voltados para escolas de base – não diretamente com os alunos, mas com os professores da rede pública – é o programa de educação dos estados e das prefeituras. O programa de educação fiscal na rede federal também trabalha com esses públicos. O programa da nossa unidade da Receita Federal do RS adotou como nicho os movimentos sociais. Existe uma parceria com a UFRGS para criar um programa de extensão, em que os disseminadores seriam os próprios alunos. A ideia é formar uma equipe de alunos para que atuem junto aos movimentos sociais, sempre nessa visão de instrumentalização, para que a sociedade se aproprie do conhecimento e possa promover as mudanças necessárias.